#6

A areia da praia brilhava. Diamante fragmentado, tão belo que me fazia querer chorar. Às vezes dava a impressão que se dissolvia aos poucos e subia no ar, tornando toda a atmosfera por ali brilhante. O oceano era vermelho, o que lembrou a minha infância por algum motivo. As ondas estavam fracas, o vento agradável.

O sol brilhava onipotente, irradiando cores verdes e azuis por todo o céu. Vi os peixes voando em direção ao horizonte sem fim. Os peixes iam em direção ao Fim do Mundo, onde nenhum homem jamais esteve, para fugir do rigoroso inverno que se aproximava.

Ou talvez quisessem apenas zombar dos homens, indo todo ano a um lugar que ninguém conseguiu ir.

Atrás de mim e da minha praia de diamantes, a cidade nascia cinza e pesada. Rasgando os céus com seus prédios de mais de 300 andares. Milhões e milhões de pessoas se acotovelavam nas calçadas lotadas. Se você prestasse bem atenção, veria que não havia muitos rostos. Alguns se repetiam e se repetiam.

Voltei para o meu carro, dei a partida e fui para casa. O carro era azul, ou vermelho. Talvez fosse preto. Talvez fosse feito de luz. Talvez fosse um caminhão vindo em minha direção, talvez o motorista tenha dormido.

Minha “casa” é um cubículo no ducentésimo quadragésimo quinto andar de um prédio antigo no centro da cidade. Minha vaga no estacionamento fica vinte e seis níveis abaixo do solo. Passo boa parte do dia no elevador.

Não estou reclamando.

Não tenho muitos amigos, pois os rostos que se repetem nas ruas me assustam e confundem. Não trabalho, mas tenho muito, muito dinheiro. Herança talvez. Não moro bem, porque não preciso. Gosto da praia de diamantes, gosto de dirigir entre os prédios que rasgam o céu e gosto do som metálico do velho elevador.

Às vezes sinto as pernas trêmulas, sinto o corpo fraquejar. Deve ser algo no ar. Ou na altura. Talvez aqueles ninhos de peixe no teto do meu prédio tenham me causado algo. Talvez o motorista tenha dormido, talvez não. E se eu pudesse desviar? Eu nem ao menos tentei.

Mas não havia razão para isso.

Eu tinha desistido, eu estava tão sozinho que parecia me afogar em mim mesmo. Eu acelerei. Talvez fosse a luz invadindo o meu mundo. Talvez fosse a escuridão logo depois. Talvez fosse um sonho. Eu não quero acordar nunca.

As pessoas vinham me visitar no meu apartamento muito tempo atrás. Elas perguntavam se eu estava bem, se eu precisava de algo. Mas eu apenas olhava. Doía. De todas as formas. Mas eu apenas olhava, sem nunca responder. Talvez eu tivesse roubado o sono do motorista. Talvez eu devesse mandar uma carta e agradecer.

As pessoas me viram alheio e apático e pararam aos poucos de me visitar.

Eu estava bem, apesar da dor.

Apesar das flores não chegarem mais e morrerem, apesar dos cartões sumirem, apesar de todos terem desistido, eu estava bem.

Da janela do meu apartamento, eu via os peixes rumando para o Fim do Mundo, mas os homens que cuidavam do prédio não viam. Eu mostrava, eu gritava e a dor aumentava. Então eu gritava mais.

Todo dia que eu gritava, eu sentia meu corpo fraco.

Como não podiam ver?

Eu pulava nas paredes, eram macias e me absorviam aos poucos. Um sonho. Uma mágica. Era a perfeição mais absoluta que alguém poderia sentir, mas isso morreu. Eu sentia uma força em minhas mãos e pés. Algo que me impedia de pular, algo que me impedia de ser feliz.

Então eu saía com meu carro e ia até a praia. Eu saía com meu carro e via um caminhão na contramão. Talvez o motorista tivesse dormido, talvez tivesse morrido. Eu saía com meu carro e não desviava.

O meu carro azul, o meu carro vermelho, o meu carro de luz, escuridão e dor.

O meu carro se espatifando em quatorze mil partes.

A minha vida acabando.

Eu via o mar, eu via as pessoas. Iguais, como se eu imprimisse seus rostos. Eu conhecia todos de algum lugar e não conhecia ninguém.

Eu não estou reclamando.

Eu gosto da minha vida.

Na Avenida Principal, todos iam em direção ao Grande Templo. Feito de ouro, marfim e metal retorcido. Mais alto que qualquer prédio, maior que qualquer divindade. E seu soberano, que talvez estivesse morto, talvez estivesse dormindo, agradecia a Deus.


Agradecia a Deus pela minha mente que nunca seria sã novamente.

Fil

#?

Ouço suas risadas falsas
E as risadas falsas
Dos seus amigos falsos

Finjo um sorriso

Eu colocaria fogo
Em todos vocês

Fil

#5

Esqueci os nomes
Dos meus amigos
E eles esqueceram
Do meu
Eu me perdi
Em algum lugar
E nem existo mais

Alguém diz
“Eu sinto sua falta”
Para uma casca vazia
Que sorri de volta
Ninguém percebe
Eu nem existo mais

Fil

#3

Tem um monstro no armário
Com medo de mim

Eu o chamo para sair
Para se mostrar
Eu pergunto
Oh, terrível monstro
O que neste mundo poderia te assustar?

Eu vejo seu olho
Por uma brecha da porta
Vermelho de tanto chorar
Você deveria sair, eu digo
Minha família iria te adorar

Tenho medo, ele diz
Medo da tua mente má
Do teu coração vazio
Temo porque és pior que eu
Ou qualquer um dos meus

Não precisa ter medo, eu minto
Eu nunca te machucaria
Nunca conheci outro monstro
Adoraria a sua companhia

Mas ele se esconde
E se cala
E eu abro a porta

E ele não está mais lá

Fil

Livre

A luz do sol invadia o apartamento, machucando meus olhos.

Eu comecei a me perguntar quanto tempo havia se passado. Quando tudo acaba, quando todos te abandonam, fica um vazio enorme dentro de você. Às vezes, esse vazio toma conta.

Tomou conta de mim.

         Primeiro, eu não tinha mais forças pra lutar pelos meus objetivos. Depois, eu não tinha objetivos. Fui perdendo a capacidade de sentir. Perdendo todas as vontades. Às vezes, um ou outro fio de esperança surgia e eu me agarrava a eles com todas as forças.

Um fio frágil sempre acaba se partindo se você fizer muita força… Ninguém me disse isso.

Pensando agora, eu poderia ter evitado isso se não dependesse tanto de quem me usa como um brinquedo pra matar o tédio. Evitado não, adiado. Nesse chão imundo, o cheiro de suor está impregnado em mim. Eu tento me mexer e o corpo dói, parece que a minha cabeça vai explodir.

Decepção atrás de decepção, abandono atrás de abandono. Eu não agüentava mais. Quis jogar tudo pela janela e depois me jogar. Quis escrever uma carta de suicídio com o nome de todos os que me trouxeram a esse ponto. Todo mundo que me abandonou. Mas seria uma lista longa de mais.

Eu poderia dizer ‘Hey, obrigado por me matarem. Eu estou livre agora. Você não pode ser mais livre que isso’. Eu poderia dizer isso e dar um soco na cara de cada um. Eu poderia dizer isso e jogar uma pedra em suas janelas. Poderia dizer isso e dar um tiro nos seus joelhos. Poderia dizer isso e queimar seus carros.

Respiro fundo. A cabeça em chamas. E eu volto a delirar.

Um velho toca uma flauta e eu observo uma cobra dançar, hipnotizada. Ela sai do chão de madeira do meu apartamento. Depois outra e outra. Elas não param de aparecer. As cobras tem rostos humanos. Os rostos que eu conheço bem. Os rostos que eu penso todo dia.

- Como você faz isso? Pode me ensinar?

Ele diz que eu não preciso aprender nada. As cobras vão se transformando em poeira e a poeira é levada pelo vento. O velho sorri. Faltam alguns dentes.

Já vai acabar. Ninguém vai ser mais livre que você.

Quem quer a liberdade?

Quando eu saí de casa, eu estava decidido a me jogar na frente de um ônibus. Ou provocar algum bandido e levar um tiro. Só consegui comprar uns comprimidos. Vários deles. Voltei pro meu apartamento sujo e minúsculo. Engoli todos e deitei no chão.

Parecia que o meu cérebro iria derreter. Durante não sei quanto tempo eu fiquei ali, delirando e delirando. Viajando na parte mais assustadora da minha mente. Depois na mais bonita, depois na mais triste… As viagens iam e voltavam. O sol estava lá e não estava.

Eu não sei se eu não consigo me mexer ou se eu não quero.

Batidas na porta. Alguém grita meu nome e eu penso que é tarde demais. Tento sorrir, minha boca está tão seca que não consigo. Batidas mais fortes, mais gritos. Merda, eu não quero ser salvo. Eu já quis, mas agora é tarde demais.

Bum...

A porta abre violentamente, eu estou olhando pra janela. O sol machuca meus olhos. Mas tudo vai ficando dormente e os olhos vão fechando. Tudo ficando escuro.

“Você está bem?”

Claro que sim.

“Chamem um médico”

Não chamem ninguém! Não… tanto faz... não vai adiantar mesmo.


Eu estou ouvindo desculpas ou estou tendo alucinações de novo? Não importa. É tarde demais. Os olhos apagam, o corpo desliga. Ninguém nunca vai ser tão livre quanto eu sou agora.

Fil

deus

No seu sonho, ele era um deus. O maior, mais temido e mais poderoso entre todos os deuses. Do seu trono, na parte mais alta do céu, ele via o mundo queimar com um sorriso no rosto.


E, com um sorriso no rosto, se deixou cair. Pelas mãos da menor de todas as criações. A única que amava.


Fil

Jonas De Ro

Eu me identifico demais com a arte do Jonas De Ro. Clica aqui pra ver mais, vale a pena.


#2

Me prendam
Numa cela
Numa caverna
Com um pouco de ar

Me tranquem numa sala escura
Com uma cama dura
E um tempo pra pensar

Me encham de remédios pesados
E vejam meu corpo cansado
Despencar
Despencar
Despencar

No vazio de outro mundo
Para poder acordar

Me esqueçam
Eu estou entediado
Eu estou louco
Eu estou ultrapassado

E vocês, tão sérios
Com seus trabalhos chatos
Sempre o mesmo amanhã
Sempre sabendo o que esperar
Só peço que me prendam
Me tranquem e me esqueçam

E se um dia alguém lembrar
Por favor, só pense

Deixa ele pra lá 

Fil

Bom dia

O sol nasce
E os pássaros cantam
“Vai pra cama

Seu merda”

Fil

Vazio

Eu me sinto vazio

O vazio é minha carga
Meu dono, minha dor

Ele se expõe
E todos podem vê-lo
Nos meus olhos cansados
Nos meus textos baratos
Na minha depressão

Mas sei que não estou só
Porque vejo um vazio
Guardado em sorrisos
De outras pessoas

O que eu não sei
É se o vazio dos outros é diferente

Ou se apenas são melhores em escondê-lo

Fil

Bluebird, Charles Bukowski

Alice

As flores estão dançando balé, a lagarta azul fumando, as borboletas feitas de ar perseguindo o coelho branco, que está sempre atrasado. Sempre maltratando o pobre motorista da Mercedes preta.

O sol está vermelho, o sol está amarelo, o sol está verde, o sol está azul, o sol está piscando no ritmo daquela batida infinita no seu cérebro.

Tuntz
Tuntz
Tuntz
Tuntz

Vermelho, amarelo, verde, azul.
Eat me.
Drink me.

Cresça, diminua. Seja tudo agora e nada daqui a pouco.

Se deixe levar pelo vândalo com o chapéu estranho. Derrube o muro feito de limites na sua cabeça, derrube o castelo de cartas da sua consciência, derrube o templo da sua culpa. Se perdoe, siga em frente. Sente nos escombros do seu passado e veja o pôr-do-sol.

Vermelho, amarelo, verde, azul.

Ande pela noite, sob as estrelas. Todas as placas indicam pra lugar nenhum e o gato te sorri no galho de uma árvore. “Pra onde você quer ir? O que você quer fazer?”

Desistir, você quer desistir. Quer que tudo acabe. Quer ser livre. Livre do seu vestido azul, livre das aulas de francês, livre da arte elitista, do conhecimento inútil e do conceito que as pessoas tem de liberdade. Se entregar completamente ao nada.

E ele te entrega ao nada. Te entrega à Rainha.

E desaparece no céu, seu sorriso é a lua que vai zombar de você para sempre.

Tuntz.
Tuntz.
Tuntz.
Tuntz.

A Rainha quer cortar sua cabeça, a Rainha não inveja sua beleza, sua juventude ou sua sabedoria. A Rainha não tem leis, a Rainha tem vontades. Ela quer cortar a sua cabeça pelo puro prazer de cortar a sua cabeça. Alguma objeção? Não? Ótimo. Cortem a cabeça!

Sem hesitação, sem resistência, sem protestos.
Você se arrepende dos seus pecados?
Não.
Você quer o perdão Divino?
Não.
Você não quer ir para o céu?
 Corte logo essa droga de cabeça.

Em nome de Deus.

O machado afiado corre em direção ao seu pescoço. Em nome de Deus. Em nome da Rainha. Em nome de tudo que importa. Você ainda ouve a lâmina cortando o vento, antes de aquilo tudo acabar.

Tuntz.
Tuntz.
Tuntz.
Tuntz.

Amarelo, vermelho, verde, azul.

Alguém gritou seu nome e ele ecoou na sua cabeça, como em uma caverna vazia.
Sua irmã, seus amigos, todos ao seu redor enquanto você se debate. Bem-vinda de volta, Alice. De volta à sua vida, à sua boate, às suas drogas, à sua liberdade que não tem sentido e não te faz feliz.


Tuntz.
Tuntz.
Tun... Que seja.



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